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Sobre Dismorfofobia: Conversa com Tales Frey

4 Mar 2013

Dismorfofobia 1Dismorfofobia, Concepção e direção: Tales Frey. Performers: Lizi Menezes, Paulo Aureliano da Mata (Cia.Excessos), Tales Frey (Cia.Excessos), Tânia Dinis (Tenda de Saias) e Xana Miranda (Tenda de Saias). Realização: Cia. Excessos. Maus Hábitos – Porto, 28 de outubro de 2012.

Foi nos Maus Hábitos no Porto, que Tales Frey nos interpelou, um a um (e eu tinha a rifa número 1), à entrada da salinha onde decorreu a performance. A voz meiga perguntava, em tom complacente, como se fosse fácil: – Quanto mede? Qual é o seu peso? Quer conferir? Uma balança, de fita métrica em riste e marcador na mão direita para calcular e registar as informações de cada um dos espetadores. – Não é preciso… -Vou confiar. – respondia. Houve quem conferisse, houve também quem ficcionasse.

Na sua pesquisa e experimentação artística, Tales Frey diz-se movido pelo hibridismo artístico, apresentando propostas que se movimentam por entre as modalidades do teatro, videoarte, performance, videoperformance e fotografia.

Com Paulo Aureliano da Mata, ambos brasileiros que vivem e trabalham em Portugal, funda em 2008 a Companhia Excessos, desenvolvendo essa ponte de criativa entre os dois lados do atlântico. 

Em Dismorfofobia, inserida no projeto Tômbola Show, comissariado por Marta Bernardes, as rifas vendidas  prometiam a celebração de uma beleza sorteada.

A performance fala-nos de como o império colorido das estrelas de cinema, as misses, as manequins, o star-system e a sociedade de mediação sensacionalista tomou o território de todos os nossos desejos, numa obediência solitária a um jogo de mercado: o de experimentar o corpo e a vida.

Num processo de fragmentação e desconstrução que irrompe também da fusão das modalidades artísticas, Tales pensa os corpos inadaptados e inadequados para problematizar a auto-representação na arte e na construção da identidade.

Diante de telas e espelhos distorcidos, num esforço do eu descobrir-se a si próprio, Dismorfofobia é a metáfora especular de um Narciso enganado pelo seu reflexo.

RXM – Durante a performance, pensei em Le Breton quando diz que na contemporaneidade o espaço que separa o homem do seu corpo se estendeu. Tens vindo a trabalhar a consciência identitária e de corpo próprio na sua relação com padrões culturais e sociais. Enquanto performer interessa-te, sobretudo, o questionamento da sociedade atual?

Tales Frey– Nas figurações artísticas que tenho proposto, sejam elas concretizadas através de uma performance, de uma série fotográfica, de uma videoarte, de um espetáculo híbrido, ou o que for, eu tenho sim me dedicado às questões presentes no meu quotidiano, portanto abordo como tema, fatalmente, a sociedade atual.

Dismorfofobia, por exemplo, é uma performance na qual eu reúno um punhado de discursos oriundos dos variados meios que temos contato diariamente. Retirei da minha caixa de e-mail alguns “spams” que emergem com seus chamarizes “milagrosos”, como por exemplo “perca 10 quilos em uma semana”, ou ainda, “aumente o tamanho do seu pênis”. Receitas de dietas, promoções em aplicações de silicone, de implantes corporais diversos, aplicações de botox, etc. Isso revela uma sociedade pouco confortável com a forma natural dos corpos que a preenchem, uma sociedade formada por sujeitos que estão insatisfeitos com as suas próprias imagens. Essas propagandas evidenciam o quanto o sujeito atual está preocupado com a autoimagem e como o mercado funciona com relação a isso. Vejo corpos que podem literalmente ir buscar determinadas modificações através da compra (em até 10 vezes no cartão e sem juros).

Engraçado notar essa busca incessante por uma individualidade, por uma construção de uma exclusividade e, ao mesmo tempo, por uma reprodução de um determinado ideal (ideia que pressupõe réplica), o que acaba por ser contraditório. Isso tudo está explícito em Dismorfofobia. Modelos de beleza são ditados pelo universo mediático e seguidos à risca pela sociedade atual, escrava dos corpos magros e de todo padrão que lhe garanta uma maior aceitação social. Tenho procurado subverter essas ideias nos meus trabalhos e me esforçado para que elas surtam algum efeito nos espectadores/participantes/receptores que estão presentes nas exibições das minhas criações.

RXM- Em Dismorfofobia há um jogo interessante entre a beleza real e a ficcionada que convoca este distúrbio psicológico e a ideia de corpo perfeito veiculado pelos meios de comunicação. De que forma estas questões são abordadas na peça?

Tales Frey – Primeiramente, escrevi um texto. Uma narrativa desvirtuada, sem coesão nas construções das frases. Um discurso esquizofrénico. Nesse discurso enviesado, eu imprimi o arsenal de “lixos psíquicos” que são quotidianamente absorvidos dos meios de comunicação. Faço, por vezes discursos contra essa cultura doentia que segue os padrões corporais ditados sem nenhum filtro, ao mesmo tempo que exponho, de forma irônica, é claro, discursos de apologia à anorexia e à bulimia.

Dismorfofobia é a síndrome da distorção da imagem, ou seja, corresponde a um distúrbio de sujeitos que não se veem como realmente são e nunca estão satisfeitos com as suas formas naturais e, mesmo alterando-as, continuarão insatisfeitos. Não estaria a sociedade atual completamente disposta a assumir tal distúrbio quando esta está formada por tantos indivíduos que descartam as próprias aparências em prol de um consumo descontrolado de imagens vigentes na televisão, nos outdoors, nas revistas e editoriais de moda?

Pensando nisso, pedi para cinco artistas (que participaram da performance) revelarem o que não aprovavam em seus corpos. Em seguida, pedi que me apresentassem imagens dos seus referenciais de beleza e, sem me surpreender, quase todas imagens eram de pessoas magras e que se enquadravam nos moldes estipulados por “belos” (considerando o senso-comum da atual sociedade, que contempla o padrão europeu de aparência).

Juntei estas imagens dos referenciais que estes artistas me mostraram para, então, criar placas de espelhos com o contorno de cada um desses referenciais, exatamente na pose que eles se encontravam na imagem apresentada. O resultado foi o de uma figura geométrica, pois eu incluí o vestuário dos referenciais no recorte dessas formas espelhadas. A altura de cada espelho correspondeu à altura de cada um dos performers. Propus, daí, que os cinco artistas (que colaboraram como performers nesse trabalho), desfilassem por trás de uma tela branca de forma mecânica, projetando então sombras de corpos estranhos, quase robóticos, pós-humanos, timbrados em cores vibrantes pelo auxílio da combinação RGB de iluminação.

Na peça, o público permaneceu entre duas telas, quase não tinha contato direto com os performers da ação, sendo uma tela a que foi descrita e, a outra, uma tela transparente com a projeção de um vídeo em que arrumo o cabelo de forma frenética durante 7 minutos. Eu, no plano ao vivo, tento fixar a imagem em movimento, construo uma nova imagem enquanto destruo a imagem antiga do vídeo, cujo instrumento para tal feitio é a mesma tinta que tinge cada fio de cabelo meu antes de dar início à ação.

Nas duas telas, ao contrário das telas de cinema, de televisão, das imensas superfícies de outdoors, procurei expor corpos deformados, transfigurados, que eram distorcidos sob o áudio que continha a narrativa textual. A minha voz a narrar também foi apresentada de forma adulterada. Nada era natural e isso coincide com as imagens bidimensionais que nos servem como referenciais.

O “ritual de passagem” que estabeleci na entrada era justamente para expor a dificuldade que cada indivíduo tem ao falar de dados concretos que formam sua aparência. O peso, a altura, enfim as medidas corporais parecem ser tabu, mesmo estando ali, diante de nossos olhos, imagens corporais que naturalmente correspondem a tais medidas, que, inclusive, já são previstas. Mesmo assim, havia quem mentisse altura e peso e que não se rendia a conferência na balança e na fita métrica que ali despus. É a ideia do corpo perfeito que faz existir essa neurose generalizada. Neurose que foi impiedosamente (embora de forma sutil) explanada antes de iniciar a peça. Queria que os espectadores percebessem alguma mudança entre o antes da ação e o depois da ação. Queria que o espetáculo funcionasse com o poder de eficácia de um ritual que conjetura transformação. 

RXM- De um lado, o desfile de corpos por trás de uma tela, exibindo roupagens geométricas e sorrisos forçados. Do outro, estás tu e um vídeo onde te auto-retratas. Inicias então essa “fixação da imagem em movimento” por meio da mancha da tinta negra. Como se traçasses a tua própria existência e a diluisses, ao mesmo tempo, numa figura humana sem nome. O público está no meio. Existem duas faces da mesma realidade: a do artista e do mundo mediático que o rodeia. Queres esclarecer um pouco melhor esta relação?

Tales Frey – Há realmente o choque das duas faces da mesma realidade, sendo que a do artista está sustentada pela função de revelar, de se manifestar, de ironizar, de formar opinião a respeito de algo e, de outro lado, a desse mundo mediático que você se refere, mundo que exerce fascínio, que quer persuadir, que quer encantar, cativar, atrair, conquistar adeptos.

Enquanto artista, a minha relação é a de intermediar, sob a função de mediador entre uma face e a outra, sendo que funciono como receptor das mesmas informações que todos os demais sujeitos, mas tenho um especial papel que é o de fazer pensar sobre o que absorvemos. Assim faz o artista, o sociólogo, o antropólogo, o filósofo e todos que tenham que refletir sobre condutas humanas e relações sociais.

RXM – Há uma relação inevitável da auto-representação e um carácter performativo nos teus restantes trabalhos. Podes falar um pouco da projeção da série Videopolaroid e no teu interesse em explorar várias modalidades artísticas?

Tales Frey– Há tempos que queria expor esta série de vídeos intitulada por Videopolaroid, onde reuni sete vídeos em que revelo a ação anterior à da imagem fotográfica, ou seja, todo espaço percorrido no local escolhido, as propostas de poses e todo processo de criação até a imagem estática. Comecei esse trabalho em 2009 em Buenos Aires.

Por ser um trabalho apoiado na contraposição do analógico e digital, os vídeos tem um tom caseiro, pois são feitos com câmeras digitais, as quais produzem imagens com excesso de pixel, algo que não me incomoda minimamente e que dialoga muito bem com a ideia proposta, penso eu.

Faço, nessa concepção, a junção da imagem em movimento e da imagem imóvel, um registro em vídeo do registro fotográfico (um registro do registro). Faço, nesse trabalho, prevalecer a pilhéria, o deboche e exploro situações infames, mas também um universo trash e sombrio. É um trabalho bem-humorado e, talvez, um dos mais leves nesse aspecto com relação a todos os outros que criei até hoje.

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