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We need it / We love it / Excess [altered natives’ Say Yes To Another Excess – TWERK]

23 Mar 2013
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“altered natives’ Say Yes To Another Excess – TWERK”. Fot. Emile Zeizig

altered natives’ Say Yes To Another Excess – TWERK. Cocriação: Cecilia Bengolea e François Chaignaud. Interpretação Élisa Yvelin, Alex Mugler, Ana Pi, Cecilia Bengolea e François Chaignaud. Música: DJ Elijah, DJ Skilliam (Butterz, London – UK). Desenho de Luz: Sindy Négoce, Jean-Marc Segalen, Cecilia Bengolea e François Chaignaud: Figurinos Cecilia Bengolea e François Chaignaud. GUIdance, Black Box Fábrica ASA, Guimarães, 14 de Fevereiro.

“You Gotta Say Yes To Another Excess” dá título ao álbum, editado em 1983, dos Yello, um grupo de música electrónica suíço composto por Dieter Meier e Boris Blank. “A little fool I want to be (…) I don’t want to wait to heaven (…) We need it/ We love it/ Excess” são excertos da letra da música homónima e poderiam ser subtítulos da peça que Cecilia Bengolea e François Chaignaud trouxeram ao GUIdance Festival Internacional de Dança Contemporânea de Guimarães, no passado mês de Fevereiro.

Na sua terceira edição anual, o festival GUIdance ajuda a colmatar a asfixia de oferta cultural no norte do país na área das artes performativas, a par de outros eventos pontuais como o Circular Festival de Artes Performativas em Vila do Conde. Num passado recente, contava-se ainda a existência do Festival Trama, programado em parceria com a Fundação de Serralves, a Matéria Prima, o brrr _ Festival de Live Art, suspenso em 2012 e, num passado dolorosamente distante, o Rivoli Teatro Municipal era o epicentro da divulgação e experimentação nesta área. Neste sentido, o GUIdance, dirigindo-se a um público diversificado, tem permitido a divulgação de propostas nacionais e internacionais (algumas mais consensuais na sua recepção, outras mais experimentais), nomeadamente, de Olga Roriz, Vítor Hugo Pontes, Né Barros, Tânia Carvalho, Sofia Dias & Vítor Roriz, ou internacionais como do Australian Dance Theatre, Peeping Tom, Les Ballets C de La B, Meg Stuart/ Damage Gods, Companhia Rosas e, neste caso, como a recente e provocatória proposta de Cecilia Bengolea e François Chaignaud. Com altered natives’ Say Yes To Another Excess – TWER,  Bengolea, Chaignaud e os restantes três performers Ana Pi, Elisa Yvelin e o voguer, Alex Mugler desafiaram, uma vez mais, o público a tornar-se voyeur de “outros excessos”.

Um frio glaciar no foyer da Fábrica ASA, agora mais despojada no rescaldo de Guimarães Capital Europeia da Cultura. À medida que o público se aproximava da Black Box, o som de música electrónica vindo do interior introduzia um ritmo que fazia esquecer o corpo contraído e expectante. A performance começava ali, com a cadência a entrar pelos corpos no corredor negro da Box até ao primeiro confronto com a imagem do palco. Dois djs numa das laterais davam o som, o linóleo branco do pavimento reflectia uma luminosidade crua e os neons suspensos na teia desenhavam linhas no tecto que partiam de um ponto e se alargavam em leque, ampliando, por ilusão perspética, o palco para toda a sala. Em ambiente “disco”, os cinco performers já em cena rodopiavam sobre si mesmos e entre si, com os braços alongados perpendiculares ao corpo, e desenhavam círculos aleatórios sem cessar. Figurinos excêntricos em tom de verde fluorescente, perucas com cristas de cor e “parangolés”[1] semi-transparentes imprimiam um ambiente desconcertante a toda a cena – algo situado entre o êxtase dos derviches e a alienação abstracta de uma noite de transe.

Do cimo da plateia, e após uma observação mais atenta, a negro sob o linóleo branco lia-se o título da peça escrito com um grafismo geométrico de grandes proporções: num dos lados “altered natives’ Say Yes To Another Excess” e no outro “TWERK”.

“Altered natives” – a hibridez de ser nativo (ou o que é ser nativo hoje?) – numa co-criação que procura ir além de outros limites ou, como referiram os autores, um processo em que os intérpretes se “devoram e multi-colonizam uns aos outros”.

A performance evolui através da fusão híbrida de movimentos importados dos clubs nocturnos e da street dance de Londres a Nova Iorque, o “jump and split”, o krump, o jamaican dancehall e, em especial, o “twerk” (dançar agitando as nádegas com clara conotação sexual) remisturados com referências da dança moderna como Cunningham ou através da simples exploração da dança pela dança.

O movimento fazia-se indissociável da música dos djs Elijah and Skilliam da cena Grime londrina, que remisturavam e transformavam sons de dancehall, ragga, hip-hop e música garage. A cena Grime terá surgido no início do ano 2000 nos clubs underground do leste de Londres e caracteriza-se por uns sons brutos, sincréticos e rimas agressivas e pouco polidas. Terá sido a primeira vez que estes djs actuaram em palco e colaboraram com criadores de dança contemporânea.

Existe uma vertente antropológica nas propostas de Cecília Bengolea e François Chaignaud quando importam para o palco da dança contemporânea gestos e corpos de outros contextos, em geral provenientes de nichos underground, de comunidades com idiossincrasias próprias (afro-americana, latina, gay, etc.) ou, simplesmente, da noite londrina e nova-iorquina, afastadas dos dispositivos de divulgação e validação mais convencionais. A peça que apresentaram anteriormente “(M)imosa”, em colaboração com Marlene Monteiro Freitas e Trajal Harell, no Festival Circular em Vila do Conde (2011), e no Festival Alkantara (2012) é disso exemplo. Partia, nomeadamente, da exploração do movimento voguing em Harlem nos anos 60, praticado por gays, travestis e transexuais afro-americanos e latinos, que competiam em salões de baile a imitação de ícones dos media e da moda.

Nas suas propostas é ainda evidente o simples interesse da dança pela dança, sem subtítulos nem teorias. Como refere François Chaignaud, “a dança é digna de falar por si própria. Não a pretendo usar para falar de um tema inteligente”.

Numa leitura superficial, esta peça reduzir-se-ia a um cenário fugaz de um club de dança, combinando estereótipos de diversas “urban dances” com elementos da dança moderna. Todavia, mesmo sem teorias subjacentes, existe nesta proposta um plano crítico e irónico sobre o que é, ou pode ser hoje, uma proposta de dança num palco contemporâneo. Não se importam os simples movimentos do quotidiano como nos encontros da Judson Church, mas os gestos de “outros” quotidianos menos mainstream, populares na rua e na noite das grandes metrópoles, no YouTube. Sem a pretensão discursiva sobre temas como género, sexo, identidades ou comunidades urbanas, são os corpos e a dança que se dispõem à nossa interpretação de uma determinada contemporaneidade, aquela que Bengolea e Chaignaud nos decidem mostrar.

À saída, fica-nos a dança no corpo.


[1] Os “parangolés”, criados pelo artista brasileiro Hélio Oiticica na década de sessenta e feitos em tecido, plástico ou outros materiais semelhantes, eram simultaneamente figurinos para vestir e esculturas em movimento. Os primeiros parangolés foram usados pelos bailarinos da escola de samba da Mangueira, de que Oiticica era participante. Esculturas vivas e dançáveis, os “parangolés” tornaram-se ícones da fusão entre a arte e a vida, intenção expressa na obra deste artista.

2 comentários leave one →
  1. Julião Sardo permalink
    25 Mar 2013 8:55

    Tenho a sensação que a presente crítica cria mais mal-entendidos históricos e lacunas artísticas que propriamente dedica uma crítica ao espectáculo.
    Por exemplo, quando se refere ao espectáculo (M)imosa esquece-se que o mesmo espectáculo era um híbrido de hipótese: o que aconteceria se o que se estava a passar na judson church se encontraria com o Paris is Burning? e não simplesmente uma exploração do movimento voguing. se existe uma tradição crítica nos espectáculos de Bengolea e Chaignaut é exatamente no seu olhar sobre estudos de género nas práticas coreográficas contemporâneas, que eles exploram e dos quais são altamente discursivos. Fazer uma comparação com a Judson Church no que se refere a ‘movimentos quotidianos’ reflecte apenas uma incompreensão geral dos paradigmas estéticos dos anos 60 e 70, incompreensão que se estende à própria crítica de Bengolea e Chaignaut. Se é um facto que a dança pode falar dela própria, o trabalho de Bengolea e Chaiganaut fá-lo a partir de um alto nível de intertextualidade, que inclui a inserção do próprio ‘movimento quotidiano’ da qual a judson church serviu de exemplo.
    Não percebo porque é que os “parangolés” merecem uma nota de fim de página, quando o “jump and split”, o krump, o jamaican dancehall, o ‘derviche’ e outros ‘conceitos’ altamente contextuais e ‘exclusivos’ não o têm.
    Dizer que este espectáculo propõem uma interpretação da contemporaneidade que os artistas nos querem mostrar é ambíguo, já que esse é o pressuposto elementar de toda a prática artística.

    • 25 Mar 2013 13:17

      Caro Julião Sardo,
      agradeço o seu comentário, ao qual darei uma breve resposta.
      Entendo que encontre lacunas na referência ao espectáculo (M)imosa, assim como dos eventos na Judson Memorial Church, mas não havia aqui o propósito de uma análise mais detalhada. No que se refere a (M)imosa, o comentário surge relacionado com o que é dito anteriormente, o interesse dos coreógrafos nos movimentos de comunidades com idiossincrasias próprias e, por isso, refiro que (M)imosa “partia, nomeadamente” disso.
      Quanto aos encontros na Judson Church, não se tratavam somente da importação de movimentos do quotidiano, mas entendi que não seria aqui nem agora o momento para desenvolver esse tema.
      Finalmente, a frase de François Chaignaud é muito clara das suas intenções: “a dança é digna de falar por si própria”. Nesse sentido, toda a intertextualidade e discursividade de que o Julião fala, e que eu concordo que esteja impregnada na sua obra, é-nos dada através dos corpos e da dança. E, por isso, o que François e Cecilia trazem para o palco e nos convidam a interpretar é um “determinado” contemporâneo, que muitos de nós desconheceríamos antes.

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